BENEDICTO LOPES – NEGRO, BRASILEIRO, PILOTO DE CARRO

“Campineiro Voador” foi primeiro representante do país a correr na Europa.

F-1 ainda não chamava F-1, ainda não existia um Mundial organizado, as corridas ainda aconteciam de forma dispersa. Mas já havia grandes marcas envolvidas, circuitos como Monza, Spa, Estoril e Nurburgring já faziam parte do cenário, já havia até jogo de equipe.

E, 70 anos antes de Lewis Hamilton estrear, pode ter havido um negro nas pistas européias: Benedicto Lopes. Brasileiro.

Benedicto era de ascendência portuguesa por parte de mãe, mas a linhagem paterna era bastante miscigenada com afrodescendentes, de modo que seu pai tinha o tom de pele escuro e Lopes poderia ser considerado mulato (embora ele se definisse como branco).

A incerteza é dos próprios filhos. Que, sem informações precisas sobre os antepassados, não sabem afirmar ao certo se há sangue africano na família.
“Quando falavam que meu pai era negro, ele brincava que era intriga da oposição. Os avôs maternos eram de Portugal, mas do lado paterno tinha uma caboclada. Era uma mistura só… Mas pode escrever que era negro, sim”, diz Valéria Lopes Cavallini, filha de Benedicto, morto em 1989, aos 85 anos.

“Meu avô paterno era bem moreno. Pelo lado dele acho que deve ter havido uma mistura. Era uma grande salada”, relata Fernando, o primogênito.

Para o documentarista Paulo Scali, especializado em história do automobilismo brasileiro, não há dúvidas. “Benedicto era mulato, com absoluta certeza. Era descendente afro, encontrei isso em várias referências nas minhas pesquisas”, afirma.

“Dito”, como era conhecido, teria sido o primeiro – e único, até prova em contrário – piloto negro da era dos Grand Prix, corridas avulsas que existiam pelo planeta e que só foram agrupadas e incorporadas num campeonato, o Mundial de F-1, em 1950, após a 2ª Guerra.

De certo, o “Campineiro Voador”, outro apelido, foi o primeiro brasileiro convidado a correr na Europa. Em 1937, cruzou o Atlântico para três provas ao volante de um Alfa Romeo. Três pódios. Em Portugal, foi segundo no Estoril e terceiro em Vila Real. Na Itália, ficou em segundo em Pescara.

Histórias, muitas, que se esfarelaram pelas décadas. Que hoje estão guardadas em poucos livros e, principalmente, numa caixa de papelão na casa de Valéria, em Campinas, e num armário em São Vicente, onde vive o filho, Fernando.

“Só quem acompanhava automobilismo, mesmo, reconhecia os feitos do meu pai. Naquela época não havia tanta divulgação, era bem diferente. O dinheiro também não era tanto como agora, mas dava para o sustento”, declara Fernando, caminhoneiro, que herdou do pai o gosto pela mecânica.

E foi esse interesse que iniciou a carreira de Benedicto no esporte. Nascido em 1904, na rua José de Alencar, no centro de Campinas, filho de um maestro e de uma dona-de-casa, ele começou a fazer dinheiro em 1932, após a Revolução Constitucionalista. Sua grande sacada: comprar jipes avariados, reformá-los e revendê-los.

Já com oficina montada, mecânico reconhecido na cidade, recebeu de um cliente o incentivo para se tornar piloto. “O nome dele era Dante de Bartolomeu. Um dia, pegou uma carona com meu pai, ficou impressionado com o jeito como ele dirigia e começou a insistir para que tentasse participar de umas corridas”, conta o filho.

A estréia aconteceu em 1934, com um Bugatti emprestado por um amigo. A prova, o 2º GP do Rio de Janeiro, no Circuito da Gávea. Um traçado de rua de 11,6 km que, com mais de cem curvas, com piso que ia do asfalto ao paralelepípedo e da terra à areia e foi celebrizado como o “Trampolim do Diabo”. Foi breve. Com problemas mecânicos, Benedicto abandonou a prova na segunda volta.

Em 1935, com um Ford adaptado, fez-se notar pela primeira vez: liderou a prova e estava próximo da vitória quando, na 22ª das 25 voltas, bateu num retardatário que estava atravessado na avenida Niemeyer.

Acidente que, 73 anos depois, continua engasgado na família. “O piloto fez aquilo de propósito, para que o amigo dele, que vinha em segundo, ganhasse a corrida”, diz Valéria. “Com aquele Fordinho, ele surrava todo mundo. Surrava os Fiat, os Alfa Romeo… Aquilo foi sacanagem”, esbraveja o filho.

O vencedor foi Ricardo Carú, argentino, pilotando um Fiat.
No ano seguinte, 1936, Benedicto conseguiu sua primeira vitória, na estrada de Petrópolis. E seguiram-se outros triunfos, em circuitos como o do Chapadão, em Campinas, e da Quinta da Boa Vista, no Rio, até que ele fosse convidado pelo Automóvel Clube de Portugal a participar de corridas por lá.

Àquela altura, a família havia mudado para o Rio, onde ele tinha duas oficinas badaladas. “Nós éramos muito bem de vida. Apartamento em Ipanema… Éramos ricos”, lembra a filha.
Com três troféus na bagagem, desembarcou no Brasil sem a recepção esperada. As homenagens ficaram restritas ao meio do automobilismo.

Num jantar promovido pelo Automóvel Clube do Brasil, batizou uma sopa. “Creme Benedito Lopes”, mostra o cardápio guardado até hoje por Valéria.
Assim, sem o Cê no nome.

Benedicto correu até 1954. Despediu-se do esporte aos 49 anos, com vitória no circuito de rua do Maracanã, quando já sofria de úlceras. O tratamento levou-o de volta a Campinas e sugou as economias da família.

Doente, o então ex-piloto ainda conseguiu tocar uma oficina de Studebaker e, mais tarde, uma autorizada da DKW. E, claro, acompanhava com interesse seus sucessores na F-1.

“Ele dizia que na época dele era muito mais difícil. O pneu era fino, o freio era ruim, o câmbio era na mão. Não tinha esse negócio de botãozinho, não. Muita gente morria correndo. Hoje, os caras batem, dão uma sacudidinha no macacão e saem andando”, diz Fernando.

Nos seus últimos tempos, de cama, acompanhou os duelos entre Nelson Piquet e Ayrton Senna. E torcia pelo último.
“Meu pai achava o Senna mais destemido, mais ousado. Ele mesmo era um piloto assim. Os adversários diziam que ele às vezes fazia umas loucuras nas pistas”, afirma Valéria.

Loucuras. Como no dia em que a levou, então com 8 anos, para dar uma volta pelo Circuito da Gávea. Sentada em seu colo, contornando o traçado que flertava com o perigo. Sua máquina, uma Ferrari. “Não tem como descrever aquela cena. Uma sensação maravilhosa.”

O ano era 1953. A F-1 já chamava F-1, já existia um Mundial. No Rio de Janeiro, fazia sucesso o primeiro samba de Vinícius de Moraes: “Quando tu passas por mim/Passa o tempo e me leva para trás”.


Texto de FÁBIO SEIXAS – Publicado na Folha de São Paulo em 16/11/2008


ANOTAÇÕES

  • Benedicto era filho de um maestro e de uma dona-de-casa. De origem humilde, decidiu aplicar seus conhecimentos de mecânica comprando jipes avariados para reformar e revendê-los, atividade que lhe rendeu grandes lucros. Em pouco tempo já havia montado uma oficina própria e era um mecânico de renome na cidade. Um de seus clientes, Dante de Bartolomeu, foi quem lhe deu o incentivo para que começasse a participar de corridas de automóveis: ofereceu-lhe um Bugatti antigo para que usasse nas corridas.

Sua estreia como piloto aconteceu em 1934, no 2º Grande Prêmio do Rio de Janeiro, no Circuito da Gávea. Benedicto correu com o Bugatti ofertado pelo amigo. O trajeto era tão acidentado que foi apelidado de “Trampolim do Diabo”. Com avarias mecânicas, Benedicto teve de abandonar a prova na segunda volta.

[Resultado final do 2º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro, 1934. Benedicto liderava a prova quando se acidentou a três voltas da final]

  • Em 1935 participou novamente, desta vez com um Ford adaptado por ele mesmo. A partir da sexta volta liderou quase toda a prova e estava próximo da vitória quando, na 22ª volta (das 25 totais) bateu no retardatário Felipe Rueda, que estava atravessado na pista, aparentemente de forma proposital de modo a ajudar um amigo, o argentino Ricardo Carú, que vinha em segundo e acabou vencendo a prova.
  • A primeira vitória veio no ano seguinte, no trajeto pela estrada de Petrópolis. Depois dessa vitória vieram outras, como no circuito do Chapadão, em Campinas, e na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro. Ainda em 1936, Lopes conheceu a famosa piloto francesa Hellé Nice, que estava no Brasil para disputar corridas no Rio (Circuito da Gávea) e em São Paulo (Circuito do Jardim América). Neste último circuito, Hellé Nice sofreu um grave acidente na reta de chegada, resultando em vários mortos e feridos. Com o trauma sofrido, ela decidiu abandonar as pistas, e vendeu seu Alfa Romeo 8C a Lopes (abaixo), que o restaurou com as peças que ela lhe enviou da Europa no ano seguinte.

Benedicto Lopes no GP Cidade do Rio, 1936 Foto reprodução

  • Em 1937, Benedicto mudou-se para o Rio de Janeiro, onde passou a morar com a família num confortável apartamento em Ipanema. Neste mesmo ano recebeu um convite do Automóvel Club de Portugal para participar de corridas naquele país. Em Portugal participou primeiramente da corrida de Vila Real, ocorrida em 25 de julho de 1937. Havia nove concorrentes, e Lopes chegou em terceiro. Em seguida, tomou parte da corrida em Estoril, a 15 de agosto. Participaram da prova cinco pilotos, tendo Benedicto chegado em segundo. Com estes feitos, Benedicto se tornou um dos primeiros brasileiros a participar de provas em solo europeu, após Manuel de Teffé.
  • Já de volta ao Brasil, conquistou duas vitórias seguidas em setembro: no Grande Prêmio de São Paulo (Circuito Jardim América) e no 3º Circuito do Chapadão, em Campinas. Em 1939 se inscreveu para participar da corrida de inauguração da pista do Autódromo de Interlagos que ocorreria a 26 de novembro do mesmo ano. Em decorrência das fortes chuvas no dia, esta prova acabou sendo adiada para o dia 12 de maio de 1940, considerada atualmente como a data oficial da inauguração de Interlagos, ocasião na qual Lopes conquistou o quarto lugar.
  • Benedicto correu até 1954, quando já contava 49 anos de idade. O “Campineiro Voador”, como era então conhecido, fez sua última participação no circuito de rua do Maracanã, conquistando o primeiro lugar. Em sua homenagem, dois anos depois foi promovida a competição “Prêmio Benedicto Lopes”, que se realizou a 12 de agosto de 1956 no Autódromo de Interlagos, tendo como ganhador Celso Lara Barberis.

Benedicto Lopes, negro, brasileiro, piloto de carro, um campeão Foto reprodução

Competições

DataTorneioResultadoVeículo
3 de outubro de 19342º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeironão completouBugatti T37A 1500
2 de junho de 19353º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiroacidente a 3 voltas da final, quando liderava a provaFord V-8 3600
23 de junho de 19351º Circuito do Chapadão
(Campinas – SP)
parou na 26ª volta
(de 44)
Ford V-8 3600
29 de março de 1936Prêmio Termal
(Poços de Caldas – MG)
2º lugarFord V-8 3600
7 de junho de 19364º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeironão completouFord V-8 3600
12 de julho de 19361º Grande Prêmio Cidade de São Paulonão completouFord V-8 3600
6 de junho de 19375º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro6º lugarAlfa Romeo 8C 2300 Monza
25 de julho de 19376° Circuito Internacional de Vila Real (Portugal)3º lugarAlfa Romeo 8C 2300 Monza
15 de agosto de 19373° Circuito Internacional do Estoril (Portugal)2º lugarAlfa Romeo 8C 2300 Monza
1 de setembro de 1937Grande Prêmio de
São Paulo
(Jardim América)
1º lugarAlfa Romeo 8C 2300 Monza
19 de setembro de 19372º Circuito do Chapadão
(Campinas – SP)
1º lugarAlfa Romeo 8C 2300 Monza
12 de junho de 19386º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeironão completou (acidente)Alfa Romeo 8C 2300 Monza
29 de outubro de 19392º Circuito da Gávea (Rio de Janeiro)2º lugarAlfa Romeo 8C 2300 Monza
12 de maio de 1940Grande Prêmio São Paulo4º lugarAlfa Romeo 8C 2300 Monza
28 de setembro de 19417º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeironão completouMaserati 4CL 1500
28 de julho de 1946Circuito da Quinta da Boa Vista
(Rio de Janeiro)
3º lugarMaserati 4CL 1500
30 de março de 19472º Grande Prêmio de Interlagosnão completouMaserati 4CL 1500
7 de dezembro de 1947Circuito da Quinta da Boa Vista
(Rio de Janeiro)
1º lugarMaserati 4CL 1500
21 de março de 19483º Grande Prêmio de Interlagos3º lugarMaserati 4CL 1500
11 de abril de 1948Circuito Internacional de Interlagos (São Paulo)3º lugarMaserati 4CL 1500
25 de abril de 19489º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeiro2º lugarMaserati 4CL 1500
4 de julho de 19481º Circuito Cidade de Petrópolis1º lugarMaserati 4CL 1500
19 de setembro de 19481º Prêmio Crônica Esportiva (Interlagos, São Paulo)3º lugarAlfa Romeo 8C 2900B
27 de março de 194910º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeironão completouBugatti
13 de janeiro de 19525º Grande Prêmio Cidade de São Paulo6º lugarMaserati 4CL 1500
20 de janeiro de 195211º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeironão completouMaserati 4CL 1500
3 de janeiro de 195413º Grande Prêmio Cidade do Rio de Janeironão completouFerrari 2000
3 de abril de 19543º Circuito do Maracanã
(Rio de Janeiro)
1º lugar(dado não disponível)

Luiz Salomão

Blogueiro e arteiro multimídia por opção. Dublê de piloto do "Okrasa" Conexão direta com o esporte a motor!

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